segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Letras do Nosso Reinado


Por Régis Alain Barbier

Se existe um termo que possa explicitar com magnitude o efeito do chá Ayahuasca, imagino que possa ser ‘meditação’. Não apenas por essa culminância que desponta como um sol, trazendo as virtudes do despertar e da coragem, a luz e a força, como se diz entre os ayahuasqueiros, mas, igualmente, pela criatividade que cresce como uma onda na exacerbação da vitalidade, ordenando uma limpeza cristalina e uma purificação onde brilha a intuição que ilumina o salão, como lugar de espanto e ensinamento, trazendo as dimensões mais extasiantes e sublimes. Com efeito, um shamadi se instala, encantando. 

Como é possível existir um ‘remédio espiritual’, um chá, uma essência indígena, vindo do biócoro florestal, efetivo em abrir o tabernáculo da essência? Ele não existe como panaceia, pois a virtude da poção exige a totalidade da virtude do probante, condições favoráveis: a vigência dessa boa vontade e aptidão em reconhecer que a sapiência, antes de ser um mero ajuntamento de conhecimento e decursos tradicionais, é o exercício valente e natural do que se justifica e entende por humanidade. Possivelmente, a Disciplina, Direção, Dedicação e Devoção, apoteóticas de outros templos, igrejas e mosteiros ordenados e referenciados pelas ‘res’ públicas, igualmente, existem nas trilhas existenciais dos ayahuasqueiros que são exitosos em ver o essencial, comungando desse chá guardado pelos indígenas: uma quadriga em “d”, esquartejada nos caminhos corajosos de quem se atreve a rejeitar essas instituições que dominam instaladas nas ruínas dos impérios, ordenando caridades sem jamais operar o que pregam, ou, destemidos, ousam transcender as vias verdadeiras, mas deportadas, sejam exiladas ou exorbitadas, dissociadas em reinados ideais e utópicos, onde os leigos apenas enxergam sub-regiões, redutos muitas vezes carentes e miseráveis.

Esse remédio existe, simplesmente. Pensando bem, uma resposta côngrua com os decursos do imaginário, mil vezes encantável com os mistérios da existência, do mar, das estrelas e da lua: não como uma lâmpada, mas um chá que desperta genialidade no indivíduo sincero que não encontra sentido nos dédalos das sociocracias, lugar onde o futuro que se possa trilhar é uma dívida que jamais se paga. Um paradoxo quântico? Talvez, o daimónion que eternamente visita os luminares ressurge substancializado no breu guardado pelos eternos descartados e banidos, índios e indígenas. Uma poção misteriosa, cujos eventuais ‘efeitos colaterais’ e menores, que só se acham com dificuldade, em pesquisas laboriosas e discutíveis, mas cujo efeito central, estrondoso, que cura a ignorância e clareia um sentido e vontade forte e viçosa de viver, jamais se propaga para que não se revele o marasmo dos que só miram suas próprias sombras, umbigos e apriorismos, das arquibancadas bem tituladas das academias onde a ‘neutralidade’ não passa de um disfarce conservador de grevistas e omissos subvencionados pelos plutocratas e tiranos da grande perdição. 

O assento que se revela no Salão de Juramidam, Tempo de Salmão, ou no Reino do Tawantinsuyo e Rei Inca, isto é nos espaços dos Ataualpas, pajés e manitós, é, com clareza para quem vê, um trono imenso, circundante, no qual sentam todos os que sabem se espantar nos intervalos dos diálogos sinceros, admirando a realeza que irradia dos seus próprios corações.  

Homens Vestidos de Preto

Há 5 séculos, homens vestidos de preto, 
Rodeados de soldados, entraram na Santa Terra das Tartarugas; 
Carregavam nas mãos o seu livro, também preto; 

Sem fazer saudações, os olhos distantes, 
Perdidos nas “alturas”, tratavam por “Vós” as suas mirações; 
Inconvenientes, sem respeito, perturbando a Natureza, clamavam: 
“Aqui está a verdade sagrada e única!”.

Os “selvagens”, que por “Vós” tratavam Terra, Água, Ar e Fogo, 
Plantas, animais, Sol, Lua e estrelas, romperam em dor 
Ao ver, aflitos, rolarem as cabeças dos Ataualpas e pajés, 
Silenciando os manitós.

Ô Mãe Natureza, hoje cheios de artifícios, sem visão, 
Doentes, sem rumos, as mãos manchadas do teu sangue antes derramado, 
Os homens das estepes e desertos terão de ver rolar ao chão 
As suas dogmáticas convicções, 

Com todas as suas sílabas vãs, editos, encíclicas e leis, 
Para aprender a sentar, silenciar, enxergar e sentir também; 
Como é grande, amiga e justa a Natureza.

Apenas um profundo ecumenismo poderá permitir que a meditação, em si - seus frutos que agregam as virtudes cardeais à rosa dos ventos, o que é justo ao que é perfeito - possa ser posta no lugar central, sem que se confundam vestes e adereços, imagens e discursos, signos instituídos em decursos culturais e históricos, com a essência de todas as formas: essa é a única subtileza que jamais se acha, nem mesmo nas esteticidades do Santo Breu. O espírito vinga apenas no coração fiel a si mesmo, o que sabe ser de si a referência suprema, sem jamais se render ao que é sujeito a se deturpar, objetificando em ordem e políticas, belezas relativas, títulos, sangue e terra.
     

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